Em dias de relatório, coisas são descartáveis, a menos que sirvam para cumprir a meta estipulada. Em dia de relatório, tudo é coisa e nada é conceito. Tudo é produção e nada é pensamento.
Avanço na rua, atravesso na faixa, pé na calçada, cigarro na boca, para jogar fora a bituca antes de entrar no prédio. O mau cheiro, contudo, não vem do meu vício. Olho para baixo e vejo o primeiro sinal de humanidade do meu dia. Um homem de mãos abertas, esperando meu dinheiro.
Minha vontade é apagar o cigarro ali. A dependência é desprezível. Vivo por mim, e talvez um pouco de dor ensine aquele mendigo mal-cheiroso a viver por si. Num mundo não muito maravilhoso, mas realista, em que tudo é coisa e nada é gente.
Passa uma garota de uns 15 anos. Diz que é uma pena que um homem bonito como eu jogue a minha beleza fora ao colocar um cigarro na boca. Pega o mendigo pela mão. “A sua beleza é difícil de ver, não é?”, ela diz.
Nas mãos da garota um chiclete, um panfleto. No fim das contas, sou eu o dependente.
Conto inspirado no nosso apreciável modo de viver paulistano, na parábola do bom samaritano e no poema "Cada Coisa" de Fernando Pessoa.
*Os Contos da Cripta deste blog são histórias fictícias de gente que está tentando morrer um pouquinho para que Cristo viva. É ficção, mas pode acontecer com qualquer um.
2 comentários:
Bom texto victor! Encontrar o segredo da vida simples e livrar-se da carreria e da ansiedade é meu grande desafio.
Esse é o Victor: quando vc acha que ele está só dando "pedradas por aí" ele vem e escreve algo que vc nunca leu mas acha que já (se) viu algum dia.
Parabéns Mais uma vez
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