sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Conto da Cripta: O taxista e o carpinteiro

Uma obra de carpintaria dependurada no meu retrovisor. E quando olho a imagem refletida nele, enxergo a carpintaria humana em ação. Ninguém imagina a cidade que se vê do meu táxi. 


É um amontoado de realidade. Ninguém imagina o que se ouve dentro de um táxi. São as visões da realidade.

Paro ao lado calçada, uma mão balançando chama a minha atenção. Jovem de terno entra no carro. Em busca do primeiro emprego, está indo para a entrevista. Atrasado. Se eu fizer um caminho alternativo, acho que ele chega a tempo.

Nossa conversa também toma um rumo alternativo. Quando pergunto a ele porque resolveu trabalhar com contabilidade, ele me responde que não sabe. Achava que poderia ganhar algum dinheiro e usar números, mas sem as complicações da engenharia.

Decido moldar um pouco do caráter deste moço. Uns 15 minutos para chegarmos ao destino. Pergunto a ele o que o faz chorar. Ele não sabe responder. Eu digo que uma mão acostumada a pregar chora toda vez que é pregada. Digo que só vai saber direito o que quer da vida quando descobrir aquilo que o faz chorar.

Pessoas precisam de gente para conversar. A solidão me faz chorar. Por isso, sou um ótimo taxista. Meu carro nunca está vazio.

Um homem inteligente com a mão no volante, depois de uns 15 anos de profissão, vira um dos homens mais sábios da Terra. Porque vê a Terra o dia todo. E porque ouve o que pensam dela o dia todo. E no fim, acho que tudo se resume à tarefa de carpintaria. Por isso, sempre carrego o carpinteiro no meu carro.
Conto inspirado na música "Daqui pro Méier", de Ed Motta.

*Os Contos da Cripta deste blog são histórias fictícias de gente que está tentando morrer um pouquinho para que Cristo viva. É ficção, mas pode acontecer com qualquer um.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Contos da Cripta: Dependente da correria

No meio da correria, só sei que a gravata vou colocando no caminho entre o estacionamento e o escritório. No meio da correria, tudo é coisa e nada é gente. Tudo é fato e nada é história. Tudo é informação e nada é poesia. E hoje é dia de relatório.

Em dias de relatório, coisas são descartáveis, a menos que sirvam para cumprir a meta estipulada. Em dia de relatório, tudo é coisa e nada é conceito. Tudo é produção e nada é pensamento.

Avanço na rua, atravesso na faixa, pé na calçada, cigarro na boca, para jogar fora a bituca antes de entrar no prédio. O mau cheiro, contudo, não vem do meu vício. Olho para baixo e vejo o primeiro sinal de humanidade do meu dia. Um homem de mãos abertas, esperando meu dinheiro.

Minha vontade é apagar o cigarro ali. A dependência é desprezível. Vivo por mim, e talvez um pouco de dor ensine aquele mendigo mal-cheiroso a viver por si. Num mundo não muito maravilhoso, mas realista, em que tudo é coisa e nada é gente.

Passa uma garota de uns 15 anos. Diz que é uma pena que um homem bonito como eu jogue a minha beleza fora ao colocar um cigarro na boca. Pega o mendigo pela mão. “A sua beleza é difícil de ver, não é?”, ela diz.

Nas mãos da garota um chiclete, um panfleto. No fim das contas, sou eu o dependente.
Conto inspirado no nosso apreciável modo de viver paulistano, na parábola do bom samaritano e no poema "Cada Coisa" de Fernando Pessoa.

*Os Contos da Cripta deste blog são histórias fictícias de gente que está tentando morrer um pouquinho para que Cristo viva. É ficção, mas pode acontecer com qualquer um.